Você sabia que a comida que você coloca no seu prato pode ter um impacto profundo na forma como seus genes se comportam? Na ciência, esse estudo é denominado epigenética, um campo que lida com as marcas químicas que ocorrem no DNA e nas proteínas associadas a ele, moldando como nossos genes são ligados ou desligados.
Em uma analogia simples, podemos pensar no ácido desoxirribonucleico (DNA) como um livro de receitas. O texto no livro representa a sequência de DNA do organismo, contendo todas as instruções para o funcionamento do corpo dele. Agora, a epigenética entra como as anotações nas margens deste livro. Essas notas indicam quais receitas devem ser seguidas, quais podem ser ignoradas e como os pratos devem ser preparados. Assim, a epigenética desempenha um papel fundamental em determinar quais genes são ativados ou silenciados nas células humanas, desencadeando um impacto significativo em nosso desenvolvimento e saúde.
O que torna este cenário ainda mais fascinante é que essas "anotações" epigenéticas podem ser influenciadas pelo ambiente em que as pessoas vivem, e uma parte fundamental desse ambiente diz respeito à alimentação e à ingestão de nutrientes. Isso resulta em modificações que podem exercer um impacto direto na expressão dos genes associados ao câncer, revelando a capacidade da dieta em influenciar a saúde e o risco de desenvolver essa doença.
De fato, cientistas têm encontrado evidências convincentes de que diversos alimentos desempenham papéis protetores na prevenção do câncer. Alguns comestíveis combatem diretamente a progressão do tumor, enquanto outros alteram o microambiente ao redor do cisto, tornando-o menos favorável para a iniciação ou crescimento do câncer. Isso significa que os nutrientes desempenham um papel crucial na epigenética da neoplasia, impulsionando pesquisas que buscam desenvolver nutracêuticos e medicamentos como tratamentos eficazes contra o tumor maligno. Assim, a nutrição se apresenta como uma ferramenta promissora não apenas na prevenção, mas possivelmente também no tratamento da doença.
Mas como as mudanças epigenéticas acontecem? De acordo com o artigo “Epigenetics: A New Link Between Nutrition and Cancer” publicado em 2013 , sabe-se que essas alterações podem ocorrer de várias maneiras, com dois mecanismos principais ganhando destaque: a metilação do DNA e modificações das histonas.
A metilação do DNA é um processo biológico, onde grupos metil, que são grupos químicos compostos por um átomo de carbono (C) ligado a três átomos de hidrogênio (H), são adicionados às moléculas de ácido desoxirribonucleico (DNA), atuando como "interruptores" que ligam ou desligam genes, ou seja, controlando se eles serão expressos ou não. O que torna isso ainda mais interessante é que a dieta pode influenciar propriamente esse processo. Um exemplo é o folato, um nutriente encontrado em vegetais de folhas verdes e legumes, que desempenha um papel essencial na metilação. Embora haja debate sobre o impacto do folato, o artigo “Folate and one-carbon metabolism nutrients from supplements and diet in relation to breast cancer risk” de 2009 sugere que um aumento na ingestão da vitamina por meio do regime alimentar pode impactar positivamente o processo de adição de grupos metil ao DNA, potencialmente reduzindo o risco de câncer.
Figura 1: Representação do processo de metilação do DNA
As histonas, por outro lado, são proteínas responsáveis por organizar o DNA em uma estrutura compacta chamada cromatina, desempenhando um papel crucial na ativação e desativação dos genes. Para que a cromatina permita a ação dos fatores de transcrição, é necessário que ocorra a acetilação das histonas, que envolve a adição de um grupo acetila (CH3CO-) a essas moléculas. Mudanças nessa reação estão associadas a diferentes tipos de câncer, como câncer de mama, próstata e colorretal. Essas alterações resultam da atividade das enzimas responsáveis por esse processo, que estão ligadas ao desenvolvimento da neoplasia maligna.
Estudos conduzidos in vitro, que ocorrem em ambientes controlados fora do organismo, e estudos in vivo, que envolvem organismos vivos, têm indicado a participação dos nutrientes na regulação dessas modificações epigenéticas das histonas. Especificamente, eles têm a capacidade de inibir duas enzimas importantes: as histona acetiltransferases (HATs), responsáveis pela adição de grupos acetila, e as histona deacetilases (HDACs), encarregados pela remoção desses grupos.
Um exemplo de um nutriente que tem essa ação, é o butirato de sódio, um composto derivado de ácidos graxos de cadeia curta e a luteolina, um flavonoide encontrado em concentrações significativas em alimentos como salsa, tomilho, hortelã-pimenta, manjericão e aipo. Ambos têm a capacidade de inibir a atividade das HDACs e aumentar a acetilação das histonas. Isso, por sua vez, resulta na inibição do crescimento, na redução da sobrevivência e na diminuição da capacidade de invasão das células cancerígenas, contribuindo para a prevenção e tratamento do câncer.
Sendo assim, os nutrientes têm a capacidade de influenciar o estado epigenético através de diversos mecanismos, e de acordo com o artigo “Effects of Dietary Nutrients on Epigenetic Changes in Cancer” de 2018, essas modificações foram relacionadas tanto ao aumento quanto à diminuição do risco de desenvolvimento de câncer. No entanto, para aproveitar ao máximo os benefícios já descobertos e garantir a confiabilidade dessas descobertas, são necessários estudos clínicos que avaliem as doses ideais de compostos dietéticos, o perfil de segurança das dosagens, a maneira mais eficaz de administração e a biodisponibilidade. Portanto, a nutrição não é apenas uma promessa na prevenção do câncer, mas também abre perspectivas para seu tratamento no futuro.
Além disso, é crucial mencionar que, enquanto alguns alimentos podem desempenhar um papel protetor na prevenção do câncer, outros podem conter carcinogênicos, substâncias que aumentam o risco de desenvolver a doença. A pesquisa em epigenética também está lançando luz sobre como essas substâncias podem interagir com nossos genes, aumentando a importância de escolher cuidadosamente nossa dieta para minimizar a exposição a esses agentes nocivos e maximizar os benefícios de alimentos saudáveis que podem influenciar positivamente em nossa saúde Portanto, compreender a relação entre epigenética, dieta e carcinogênicos é fundamental para uma abordagem geral na prevenção e tratamento do câncer.
Referências Bibliográficas
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Excelente texto! Estamos cada vez mais cientes do quanto o nosso estilo de vida impacta na forma como nossos genes se expressam. Por isso, temos cada vez mais que nos autoconhecer e praticar o autocuidado.
Além da alimentação e também influenciada por ela, um outro fator fundamental para a regulação dos nossos genes, é a nossa microbiota intestinal, que produz butirato (AGCC) por meio da fermentação de fibras alimentares. Ainda, a microbiota é responsável pela produção de serotonina e GABA, neurotransmissores associados, respectivamente, ao nosso bem estar e controle da ansiedade e, portanto, essenciais para o controle das emoções que reverberam no nosso comportamento.
A sinergia entre nutrição, exercício físico, microbiota e a conexão cérebro-intestino são os alicerces da regulação…