A EXCLUSÃO SOCIAL COMO DETERMINANTE DA CRIMINALIDADE: UMA ANÁLISE DA INFÂNCIA MARGINALIZADA EM CAPITÃES DA AREIA
- Lunna Nunes, Ricardo de Jesus, Andréia dos Anjos, Fernanda Fernandes, Gabrielly Nunes e Gabryella Ribeiro
- 2 de mai.
- 20 min de leitura
RESUMO
Ao longo da história, a marginalização de crianças e adolescentes em situação de abandono tem sido um fator determinante para a perpetuação da violência e da exclusão social. Em Capitães da Areia, Jorge Amado constrói uma narrativa que evidencia essa realidade, retratando um grupo de meninos de rua que vivem à margem da sociedade e são constantemente criminalizados por um sistema que falha em lhes oferecer alternativas.
Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo principal analisar como o abandono infantil e a negligência social contribuem para a construção da identidade e do comportamento violento desses jovens. Primeiramente, discute-se a ausência de suporte familiar e estatal e suas consequências emocionais e sociais, destacando passagens da obra que ilustram a privação de afeto e a falta de perspectivas. Em seguida, investiga-se a maneira como a marginalização e a repressão institucional moldam a percepção dos personagens sobre si mesmos e sobre a sociedade, evidenciando o ciclo de exclusão e criminalização imposto a esses jovens. Além disso, analisa-se o papel do Estado e da família na perpetuação dessa realidade, demonstrando como a falta de políticas públicas eficazes e de apoio estrutural contribuem para a reprodução da delinquência.
Diante dessa análise, conclui-se que os personagens de Capitães da Areia não são criminosos por natureza, mas sim vítimas de uma sociedade que os abandona antes mesmo que possam escolher outro caminho. Dessa forma, o estudo reforça a necessidade de estratégias de inclusão social e de políticas públicas que garantam direitos básicos e criem alternativas reais para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, visando romper o ciclo de exclusão e violência.
Palavras-chave: Abandono infantil; delinquência juvenil; marginalização; exclusão social; repressão institucional.
1. INTRODUÇÃO
Ao longo da história, o aumento da criminalidade tem se perpetuado paralelamente às injustiças sociais, que se manifestam desde a primeira infância. De acordo com o psicanalista Donald Winnicott a formação das crianças depende inicialmente de um ambiente acolhedor que atenda às suas necessidades emocionais. Desse modo, ele defende que as crianças desenvolvem uma base sólida para a sua identidade e autoestima através do cuidado materno e do apoio familiar.
Dessa maneira, o abandono infantil não se limita somente a ausência de cuidados imediatos, mas a perda de ser visto e reconhecido como sujeito de direitos. Isso afeta diretamente no comportamento e psicológico infantil, assim essa exclusão social cria condições propícias para atos criminalistas, que, muitas vezes, se torna um meio de sobrevivência e afirmação para aqueles que são sistematicamente marginalizados. No livro “Capitães da areia” do autor Jorge Amado, é apresentada uma literatura vinculada à sociedade como um mecanismo de denúncia dos acontecimentos da vida social. Assim os meninos das ruas de Salvador representam um recorte da sociedade baiana, marcada pela marginalização, abandono infantil e injustiças sociais.
Desse modo, o presente artigo tem como objetivo principal analisar e discutir o problema social gerado pela marginalização infantil, apresentar referenciais teóricos acerca da temática exposta, e trazer à tona um estudo profundo sobre a infância dessas crianças.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. O ABANDONO NA INFÂNCIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS: UM OLHAR A PARTIR DE CAPITÃES DA AREIA
A vulnerabilidade das crianças é uma problemática social que persiste há séculos, produzindo efeitos profundos no desenvolvimento emocional, social e psicológico dos meninos deixados nas ruas. No romance "Capitães da Areia", Jorge Amado retrata a vida de meninos abandonados que vivem nas ruas de Salvador, enfatizando não apenas a dura realidade da exclusão, mas também as consequências desse abandono para o futuro desses jovens.
A obra mostra como a falta de estrutura familiar e de suporte social leva os personagens a construírem seus próprios códigos de sobrevivência. Figuras como Pedro Bala, que se destacam como líderes do grupo, são formadas em um ambiente hostil, onde a violência e a prática criminosa representam não só condições de sobrevivência, mas também maneiras de se afirmar e construir uma identidade. O livro ilustra que o abandono empurra essas crianças para um ciclo de exclusão e criminalidade, barrando seu acesso à educação e a chances de progresso.
Outro ponto importante é a maneira como a sociedade vê esses jovens. No livro, as entidades que deveriam protegê-los, como a polícia e os reformatórios, intensificam a imagem de "criminosos", tratando-os com repressão ao invés de acolher-los. Esta ausência de empatia e suporte apenas intensifica a marginalização dessas pessoas.
Contudo, Amado também evidencia a resiliência e a humanidade desses jovens. A amizade, a solidariedade e os sonhos continuam entre eles, mesmo perante os obstáculos. Dora, a única menina do conjunto, representa essa chance de afeto e redenção, mesmo que seu destino também seja trágico.
Em uma análise crítica contemporânea, Capitães da Areia continua sendo um reflexo das questões contemporâneas. O abandono infantil persiste como um problema social em diversas regiões do mundo, frequentemente intensificado por circunstâncias socioeconômicas. O livro expõe a falta de atenção do Estado e da sociedade, nos levando a refletir sobre a urgência de políticas públicas focadas na proteção e inclusão dessas crianças.
Portanto, o trabalho de Jorge Amado não só revela a dura realidade do abandono de crianças, mas também instiga uma reflexão sobre a função da sociedade na perpetuação ou resolução deste problema. Afinal, essas crianças poderiam ter um futuro diferente se recebessem apoio e oportunidades desde cedo.
2.2 PSICANÁLISE E MARGINALIZAÇÃO: COMO A INFÂNCIA INFLUENCIA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
A infância desempenha um papel fundamental na construção da identidade de um indivíduo totalmente formado, sendo, para muitos teóricos, o período em que as bases do desenvolvimento psíquico são definitivamente estabelecidas. Segundo Priszkulnik (2000), a Psicanálise propõe uma leitura da corporeidade apoiado pela sexualidade e pela linguagem, onde Sigmund Freud — considerado o pai da Psicanálise — enfatiza o poder da palavra como um instrumento norteador do ser humano. Segundo Priszkulnik in: Freud (1926, 1976c):
“Não desprezemos a palavra; afinal de contas, ela é um instrumento poderoso; é o meio pelo qual transmitimos nossos sentimentos a outros, nosso método de influenciar outras pessoas; as palavras podem fazer um bem indizível e causar terríveis feridas” (p. 214)
Enfatiza-se que sexualidade como um conceito dentro da Psicanálise freudiana diz respeito à função corpórea vigente basicamente ao prazer, servindo, ou não, às finalidades de reprodução, não estando necessariamente conectada aos órgãos sexuais e ao sexo genital. Priszkulnik aponta em Laplanche e Pontalis (1976) que “sexualiadade” designa uma série de excitações e de atividades presentes na vida humana desde o período da infância, que proporcionam prazeres que buscam satisfazer necessidades fisiológicas fundamentais ao indivíduo que incluem a respiração, a fome, a função de excreção entre outras demandas do corpo biológico.
Nessa perspectiva, na Psicanálise freudiana, um indivíduo, mesmo antes do momento de seu nascimento, já inicia sua construção como um ser humano, pois ele já é marcado pelo desejo inconsciente dos pais e ocupa um lugar em seus imaginários. Nessa linha, Priszkulnik afirma em Lacan (1985) que a linguagem é imprescindível para a constituição do sujeito humano, desde que só somos humanos porque nós falamos e nosso inconsciente, como formulado por Freud, se revela na fala — na expressão da linguagem — queira o indivíduo ou não.
Por conseguinte, a criança analisada por Freud é um sujeito como qualquer outro — o ser que dá origem ao outro — desde que, como Priszkulnik diz em Laplanche e Pontalis (1976), a amnésia infantil, que resulta do recalcamento de quase todas as memórias desenvolvidas nos primeiros cinco ou seis anos de idade, distancia o ser adulto do ser criança, a tal ponto que ambos enxergam um ao outro como um enigma a ser decifrado. No entanto, como o adulto surge a partir da criança e ela também está inserida em meio a mesma linguagem que ele, é perceptível que ela é também é um sujeito desejante, demandando coisas que vão além daquelas que apenas satisfazem suas necessidades. Assim sendo, Priszkulnik (2004) conclui que a criança freudiana passa pelas etapas de desenvolvimento e maturação biológicas, de fato. Contudo ela também constrói o corpo tecido e marcado pela sexualidade e pela linguagem, dependendo das vicissitudes de sua vida, sua estruturação inconsciente e seu contexto familiar e socioeconômico cultural.
Em Capitães de Areia, Jorge Amado retrata a infância de crianças marginalizadas que, pela falta de um contexto familiar adequado e das condições sociais e econômicas favoráveis, têm seu processo de construção de identidade prejudicado, se vendo forçadas a viver nas ruas de Salvador ao serem abandonadas por diversos motivos, a depender de cada personagem. A infância de cada jovem, como Pedro Bala, Professor e os outros garotos, é permeada por ausência de afeto e segurança, o que interfere profundamente em seu desenvolvimento psíquico. Nessa linha, a situação hostil na qual eles estão inseridos acelera etapas essenciais para a constituição da psique da criança e os coage a amadurecer de maneira precoce a fim de aumentar as suas chances de sobrevivência. Nesse cenário, o indivíduo é apagado e só resta uma casca que reage de maneira autônoma ao que lhe é dirigido com o que essas condições lhe permitiram manter, a violência.
Um exemplo certeiro que pode ser citado de como isso aparece e é retratado é o personagem de Sem-Pernas, uma das principais crianças que participam do grupo “Capitães de Areia” no livro. Sem-Pernas é um indivíduo preenchido únicamente pelo ódio — seu mecanismo de defesa para com a rigorosidade da vida — agindo diferente de outros personagens como Boa Vida, Pirulito e Professor, que encontram oportunidades de escapismo em outras atividades cotidianas. Ele se vê vitimizado pelas circunstâncias e responde com agressividade, pois nem seu nome lhe sobrou.
“Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pôde ter um carinho. E no dia que o teve foi obrigado ao abandonar porque a vida já o tinha marcado demais. Nunca tivera uma alegria de criança. Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável das vidas: a vida de criança abandonada. Nunca conseguira amar ninguém, a não ser a este cachorro que o segue. Quando os corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos, o do Sem-Pernas já estava cheio de ódio. Odiava a cidade, a vida, os homens. Amava unicamente o seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico.” (AMADO, 1937).
Nessa conjuntura, percebe-se que os Capitães de Areia, diante deste cenário, maturam cedo demais para os padrões usuais da sociedade. Assim, as crianças fumam, bebem, roubam, praticam atos libidinosos e afins, pois foram usurpados de infâncias dignas, apropriadas e condizentes com educação infantil contemporânea. Por esta razão, vê-se mais apropriado relacionar este contexto ao que Priszkulnik aponta em Ariès (1981, p. 156) como a aprendizagem no período medieval, onde:
“[...] Não se encontra o sentimento da infância, ou seja, “(...) a consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem”. Ao se tornar mais independente em relação à mãe, a criança passa a fazer parte do grupo dos adultos, no qual participa das mesmas atividades e freqüenta os mesmos espaços e faz seu aprendizado para a vida. Não há uma preocupação com a educação.”
Sendo assim, a análise Psicanalítica de “Capitães da Areia” nos permite compreender a profundidade dos impactos da marginalização infantil como consequência da falta de redes de apoio familiar na formação da identidade da criança. O desamparo e a exclusão, como evidenciado na trajetória dos personagens, não são apenas consequência da falta de recursos, mas também de uma sociedade que negligencia sua existência, impondo-lhes dor, nutrindo o ódio e perpetuando o ciclo de sofrimento dessa classe vulnerável.
2.3 A VIOLÊNCIA COMO REFLEXO DO MEIO: A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO SOCIAL NA DELINQUÊNCIA JUVENIL
A violência não nasce do indivíduo, mas do meio que o molda. Em Capitães da Areia, Jorge Amado denuncia como a marginalização desde a infância empurra jovens para um ciclo de violência que a sociedade insiste em punir, mas nunca prevenir. Os personagens da obra não são naturalmente delinquentes; são produtos de um Brasil desigual que os rejeita desde o nascimento. O romance escancara a hipocrisia de uma sociedade que primeiro abandona suas crianças e, depois, as criminaliza por buscarem formas de sobreviver (AMADO, 1937). Essa realidade se alinha à teoria do apego de Bowlby (1989), que demonstra como a ausência de vínculos seguros na infância leva a dificuldades emocionais e comportamentais, podendo resultar em agressividade e desajuste social (BOWLBY, 1989).
O abandono e a violência são traços estruturais da infância desses jovens. Como mostram os estudos sobre abandono infantil, a falta de um ambiente acolhedor e de vínculos afetivos durante a infância compromete o desenvolvimento psicológico, levando a transtornos emocionais e comportamentais que podem culminar na delinquência (BÖING; CREPALDI, 2004). Isso é evidente em personagens como Sem Pernas, cuja deficiência física o torna alvo de rejeição e ódio desde cedo. Sua agressividade não é inata, mas uma reação ao desprezo e à brutalidade que sofreu ao longo da vida. Segundo Winnicott (1993), a falta de um ambiente facilitador pode fazer com que a criança desenvolva um falso eu, adaptando-se de maneira defensiva a um meio hostil (WINNICOTT, 1993). Sem Pernas incorpora essa teoria ao construir uma identidade baseada na desconfiança e na manipulação, tornando-se alguém incapaz de criar laços autênticos.
Pedro Bala, o líder do grupo, encarna a revolta contra um sistema que não oferece saída. Filho de um operário assassinado em uma greve, ele cresce sem qualquer referência familiar ou proteção do Estado. Sua liderança não é apenas uma habilidade nata, mas a consequência de um aprendizado forçado nas ruas, onde a esperteza e a força garantem a sobrevivência (AMADO, 1937). Ele representa o potencial desperdiçado de milhares de jovens que poderiam ter se tornado líderes em outro contexto, mas que, na miséria, se tornam chefes de bandos. Essa trajetória pode ser analisada à luz da Teoria do Desenvolvimento Moral de Kohlberg (1981), que sugere que crianças sem suporte social adequado tendem a permanecer em estágios morais primários, baseados na sobrevivência e na obediência à autoridade do grupo (KOHLBERG, 1981). Quando Pedro Bala conhece o movimento revolucionário, sua visão de mundo se expande, indicando que o contexto social é determinante na formação da moralidade e do comportamento humano.
Já o Professor simboliza o contraste entre a cultura e a marginalidade. Autodidata, apaixonado por livros, ele reflete o paradoxo de um menino que busca conhecimento em um mundo que não lhe dá espaço para desenvolvê-lo (AMADO, 1937). Seu talento para a arte poderia tê-lo levado para outro caminho, mas o contexto de abandono e exclusão limita suas escolhas. Seu destino dentro do grupo evidencia que inteligência e sensibilidade, sem oportunidades concretas, não são suficientes para romper o ciclo da marginalização. Essa perspectiva pode ser entendida a partir das teorias de Vygotsky (1991), que enfatiza a importância do meio social no aprendizado e no desenvolvimento cognitivo. O Professor, privado de estímulos e interações educativas adequadas, tem seu potencial subaproveitado, reforçando a ideia de que a exclusão social não se resume apenas à falta de recursos materiais, mas também ao acesso ao conhecimento (VYGOTSKY, 1991).
Sem Pernas e Pirulito ilustram como a delinquência não anula os desejos humanos básicos por afeto e pertencimento. Sem Pernas, mesmo tendo desenvolvido uma casca dura de desconfiança e ódio, tem momentos de fragilidade que revelam sua necessidade reprimida de acolhimento.
“E o Sem-Pernas tinha verdadeira satisfação ao pensar em quanto o xingariam aquelas senhoras que o haviam tomado por um pobre órfão. Assim se vingava, porque seu coração estava cheio de ódio. Confusamente desejava ter uma bomba como daquelas de certa história que o Professor contara que arrasasse toda a cidade, que levasse todos pelos ares. Assim ficaria alegre. Talvez ficasse também se viesse alguém, possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos e mãos suaves, que o apertasse contra o peito, que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom, um sono que não estivesse cheio dos sonhos da noite na cadeia. Assim ficaria alegre, o ódio não estaria mais no seu coração. E não teria mais desprezo, inveja, ódio de Pirulito que, de mãos levantadas e olhos fixos, foge do seu mundo de sofrimentos para um mundo que conheceu nas conversas do padre José Pedro”. (AMADO, 1937, p. 29).
Sua trajetória demonstra como a violência pode ser tanto um reflexo do meio quanto um mecanismo de defesa contra ele (AMADO, 1937). Isso dialoga com a teoria do hospitalismo de Spitz (1945), que aponta que crianças privadas de afeto desde cedo podem apresentar dificuldades emocionais graves, tornando-se apáticas ou agressivas (SPITZ, 1945). Já Pirulito é um contraponto dentro do grupo: profundamente religioso, ele demonstra que, mesmo em um ambiente hostil, há aqueles que buscam redenção. Sua fé representa uma tentativa de encontrar sentido e esperança, mostrando que a espiritualidade pode ser um fator de resiliência para jovens em situação de vulnerabilidade (AMADO, 1937). Essa ideia se conecta com a Teoria da Resiliência de Rutter (1987), que argumenta que fatores de proteção, como crenças e apoio social, podem mitigar os impactos de um ambiente adverso (RUTTER, 1987).
A sociedade que os condena é a mesma que os criou. A polícia, o sistema judiciário e a opinião pública veem os Capitães da Areia como ameaças, mas ignoram o fato de que esses meninos foram abandonados antes mesmo de cometerem qualquer crime (AMADO, 1937). Os estudos sobre acolhimento infantil mostram que a institucionalização dessas crianças, muitas vezes, aprofunda sua exclusão. No romance, os reformatórios funcionam como prisões disfarçadas, onde a violência e a repressão apenas reforçam o sentimento de revolta e vingança (BÖING; CREPALDI, 2004). A fuga desses locais não é um ato de rebeldia, mas uma recusa a aceitar um destino já traçado pela indiferença social. Essa dinâmica dialoga com as ideias de Michel Foucault (1975) sobre o funcionamento das instituições disciplinares, que não corrigem, mas perpetuam a marginalização (FOUCAULT, 1975).
O que Jorge Amado denuncia, e que permanece atual, é que a violência juvenil não pode ser analisada fora do contexto social. Pedro Bala, Professor, Sem Pernas, Pirulito e os outros poderiam ter sido qualquer coisa – artistas, líderes, intelectuais – se tivessem recebido o mínimo necessário para isso (AMADO, 1937). Mas, como foram lançados ao abandono, encontraram na violência um caminho inevitável. No fim, o romance não apenas narra uma história de delinquência, mas questiona se esses meninos eram mesmo delinquentes ou apenas vítimas de um país que nunca os quis.
O trecho do romance em que Sem Pernas tenta andar no carrossel e é impedido por estar vestido de farrapos é emblemático da exclusão social imposta aos mais pobres (AMADO, 1937, p. 57). O carrossel, símbolo da infância e da inocência, torna-se para ele um objeto de desejo e frustração. Freud argumenta que a repressão de desejos pode levar à formação de mecanismos de defesa que se manifestam em comportamentos agressivos e transgressivos (FREUD, 1923). A raiva de Sem Pernas contra a sociedade se materializa no furto da bilheteria, um ato que, para ele, representa tanto vingança quanto uma tentativa de reafirmar sua existência em um mundo que o rejeita. A psicanálise explica que crianças em situação de exclusão internalizam sentimentos de indignidade, projetando essa frustração em atos de revolta contra as instituições que os marginalizam (SPITZ, 1945).
“Volta Seca e o Sem-Pernas nunca haviam acolhido uma com tanto entusiasmo. Eles muitas vezes já tinham visto um carrossel mas quase sempre ouviam de longe, (...) O Sem-Pernas já tinha mesmo certo dia em que penetrou num Parque de Diversões armado no Passeio Público, chegando a comprar entrada para um, mas o guarda o expulsou do recinto porque ele estava vestido de farrapos. Depois o bilheteiro não quis lhe devolver o bilhete da entrada, o que fez com que o Sem-Pernas metesse as mãos na gaveta da bilheteria, que estava aberta, abafasse o troco, e tivesse que desaparecer do Passeio Público de uma maneira muito rápida, enquanto em todo o Parque se ouviam os gritos de: Ladrão!, ladrão! Houve uma tremenda confusão, enquanto o Sem-Pernas descia muito calmamente a Gamboa de Cima, levando nos bolsos pelo menos cinco vezes o que tinha pago pela entrada.” (AMADO, 1937, p. 57)
Além disso, a passagem demonstra como as barreiras impostas pela desigualdade são internalizadas. Sem Pernas não vê a possibilidade de inclusão; ao contrário, sua reação é um ciclo contínuo de rejeição e retaliação. Bourdieu (1983) argumenta que a exclusão social opera através da reprodução de habitus, ou seja, padrões internalizados de comportamento que limitam a mobilidade social dos marginalizados. Ao ser expulso do carrossel, Sem Pernas não apenas sofre um episódio isolado de discriminação, mas incorpora a ideia de que a sociedade nunca o aceitará, reforçando sua trajetória criminosa (BOURDIEU, 1983).
Para Sem-Pernas, esse carrossel assume uma dimensão emocional ainda mais profunda. O trecho "pela primeira vez seus olhos sentiram-se úmidos de lágrimas que não eram causadas pela dor ou pela raiva" (AMADO, 2012, p. 108) indica um momento raro de vulnerabilidade e conexão emocional. A figura de Nhozinho França adquire um papel quase paternal para ele, sendo vista com devoção e respeito. Esse deslocamento simbólico do carrossel mostra que, apesar da violência e da marginalização, ainda existe nos personagens um desejo latente de experiências infantis e afeto.
A cena final do trecho, em que o carrossel de Nhozinho França emociona os Capitães da Areia, ilustra um momento raro de conexão entre os meninos e um universo de sonho e esperança. O choro de Sem Pernas – pela primeira vez não causado por dor ou raiva – revela uma faceta reprimida de sua personalidade: o desejo por pertencimento e ternura. O carrossel, portanto, simboliza um refúgio temporário, uma realidade onde, por um breve momento, os meninos deixam de ser delinquentes e voltam a ser apenas crianças.
2.4 A AUSÊNCIA DO ESTADO E DA FAMÍLIA: COMO A NEGLIGÊNCIA SOCIAL MOLDA A DELINQUÊNCIA JUVENIL.
Em Capitães da Areia, Jorge Amado revela como a negligência do Estado e da família empurra as crianças e adolescentes para um ciclo de marginalização e delinquência, criando um ambiente onde a violência se torna um reflexo da falta de proteção e apoio social. A obra expõe o abandono de crianças como Pedro Bala, Sem Pernas e outros membros do grupo, que não encontram suporte em suas famílias ou nas instituições públicas. Essa ausência não é apenas um detalhe, mas a raiz dos problemas que os personagens enfrentam ao longo da narrativa. Os meninos de Capitães da Areia não nascem delinquentes, mas se tornam como resultado direto da sociedade que os rejeita e os empurra para as ruas. A obra, portanto, não se limita a uma história de criminalidade, mas denuncia um sistema social falho, que primeiro abandona seus jovens e depois os criminaliza por sua sobrevivência.
"Pedro Bala e os outros meninos não nasceram delinquentes. Eles se fizeram como resultado direto da sociedade que os rejeita e os empurra para as ruas. O que as ruas fizeram deles foi consequência da violência e da indiferença das instituições." (AMADO, 1937)
Esse trecho do livro ilustra o ponto central do argumento: os meninos dos Capitães da Areia não escolhem a delinquência, mas se veem forçados a adotá-la como um mecanismo de sobrevivência, dado o contexto de abandono e marginalização que os rodeia.
Essa realidade de negligência e marginalização é amplamente discutida por teóricos da psicologia e da sociologia, como John Bowlby (1989), que em sua teoria do apego destaca a importância dos vínculos afetivos na infância para o desenvolvimento emocional saudável. Quando essas crianças não têm um ambiente de proteção e carinho, as consequências são profundas, incluindo dificuldades comportamentais e psicológicas, que podem resultar em comportamentos agressivos e delinquentes. Na obra, personagens como Sem Pernas e Pedro Bala demonstram como a falta de uma base emocional segura, seja pela ausência da família ou pelo abandono do Estado, pode levar ao surgimento de comportamentos destrutivos como mecanismo de defesa contra um mundo cruel e indiferente.
"Sem Pernas, que nunca soubera o que é carinho, explodiu em raiva. O mundo para ele sempre foi feito de golpes, e os golpes ele retribuía com mais golpes." (AMADO, 1937)
Com esse trecho, podemos então, ter o Sem Pernas como exemplo, que desenvolve uma agressividade que é uma resposta direta ao desprezo e à violência sofrida ao longo de sua vida, validando as afirmações de Bowlby sobre o impacto negativo da falta de vínculos afetivos seguros na infância (BOWLBY, 1989).
Além disso, a história de Pedro Bala reflete a teoria de Kohlberg (1981) sobre o desenvolvimento moral. Sem o apoio de uma estrutura familiar ou institucional que possa guiá-lo, Pedro Bala se vê forçado a aprender com a experiência das ruas, onde a moralidade é muitas vezes ditada pela necessidade de sobrevivência. Sua liderança no grupo não é um talento inato, mas uma habilidade desenvolvida em um contexto onde a esperteza e a força são essenciais para garantir a sobrevivência. Esse aprendizado forçado nas ruas, sem um sistema de apoio que oferecesse alternativas, é o que o torna o líder dos Capitães da Areia, assim como milhões de jovens em situações semelhantes. Sua trajetória exemplifica como a formação moral de um indivíduo está profundamente ligada ao contexto social em que ele cresce, e como a ausência do apoio do Estado e da família pode conduzir à formação de valores distorcidos, baseados na sobrevivência e na resistência ao abandono (KOHLBERG, 1981).
O personagem do Professor, por outro lado, ilustra o contraste entre talento e marginalidade. Apesar de ser autodidata e apaixonado pela arte, ele é rejeitado tanto pela sociedade quanto pelo seu próprio grupo. Sua busca por conhecimento é uma tentativa de escapar do ciclo de violência e pobreza que define sua vida, mas o contexto de exclusão social não permite que ele realize seu potencial. A história do Professor ecoa a teoria de Vygotsky (1991), que enfatiza a importância do contexto social para o desenvolvimento cognitivo. A ausência de um ambiente educacional adequado limita a capacidade do Professor de utilizar seu potencial intelectual, colocando em evidência que a falta de acesso à educação e ao conhecimento, frequentemente negado a jovens marginalizados, é um fator crucial na perpetuação da exclusão social (VYGOTSKY, 1991).
A delinquência dos meninos na obra não é um reflexo de um comportamento inato ou uma escolha pessoal, mas sim o resultado de uma sociedade que falha em proporcionar as condições mínimas para um desenvolvimento saudável. A violência, portanto, se torna não apenas uma consequência inevitável do contexto social, mas também um mecanismo de defesa contra a rejeição e a marginalização. O conceito de hospitalismo de Spitz (1945) se aplica bem aos meninos da obra, especialmente a Sem Pernas, que, apesar de sua fachada de agressividade, revela momentos de profunda fragilidade e necessidade de afeto. A falta de uma estrutura de apoio desde a infância compromete seu desenvolvimento emocional e social, tornando a violência uma resposta ao abandono e ao desprezo (SPITZ, 1945).
Ainda, a crítica social apresentada na obra dialoga com a análise de Michel Foucault (1975) sobre o funcionamento das instituições disciplinares. Na obra, os reformatórios não funcionam como espaços de reabilitação, mas como instituições de punição que apenas reforçam a marginalização.
"Eles fugiram novamente, como sempre faziam. A sociedade os queria presos, mas os meninos sabiam que a prisão era a morte. Preferiam a liberdade das ruas, mesmo que fosse a liberdade de viver sem esperança." (JORGE AMADO, 1937)
A fuga dos meninos desses locais não é um ato de rebeldia, mas uma recusa em aceitar um destino predeterminado pela indiferença social. Essa dinâmica institucional, que marginaliza e estigmatiza ainda mais aqueles que já estão à margem, reforça a visão de Foucault sobre como as instituições não corrigem, mas perpetuam o ciclo de exclusão (FOUCAULT, 1975).
Portanto, Capitães da Areia não apenas narra uma história de delinquência, mas questiona o papel da sociedade na criação desses "delinquentes". Ao expor como o abandono do Estado e da família molda a trajetória dos meninos, Jorge Amado nos convida a refletir sobre a responsabilidade social na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Esses meninos poderiam ter sido qualquer coisa — artistas, líderes, intelectuais, etc. — se tivessem recebido o mínimo de suporte necessário. Mas, ao serem abandonados, encontraram na violência uma resposta inevitável a um sistema que os negou desde o início.
3. CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que a obra “Capitães da areia” não se resume apenas à contar histórias dos meninos que vivem em situação de rua, mas também apresenta um necessário registro de grupos marginalizados, até então silenciados e descredibilizados da história, tornando-se então um patrimônio da literatura, com grande relevância social. A obra de Jorge Amado é um exemplo da importância de compreender a visão social sobre uma infância desamparada, evidenciando o próprio processo de exclusão social que é imposto a esses jovens, além de auxiliar na construção para análise de como essa exclusão se torna um fator determinante da criminalidade, de modo que deixa as crianças suscetíveis a um ciclo contínuo de marginalização.
Diante das discussões abordadas, observa-se que a obra transparece o obscuro por trás da realidade das crianças marginalizadas, oferecendo uma análise crítica sobre o abandono e como ela afeta de maneira ruim essas crianças. O abandono na infância, de acordo com a narrativa, não apenas afasta as crianças de ter um desenvolvimento saudável, mas também os coloca em posição de uma vida que gira em torno da criminalidade e da hostilidade. Assim como, a psicanálise, possibilita absorver como esse abandono está diretamente associado à construção da identidade, formando a personalidade e a percepção de mundo desses indivíduos. Tal como, a violência vivida pelos personagens pode ser examinada como uma resposta ao meio em que estão inseridos, demonstrando como o contexto social influencia na delinquência juvenil e na persistência da violência. Por fim, apresenta a ausência do Estado e da família como uma das principais causas que cooperam para a marginalização dessas crianças, evidenciando como a negligência social e institucional reforça a exclusão social, afirmando ainda mais o papel fundamental de obras como "Capitães da areia”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 1937.
[2] ARIÈS, Philippe. (1981). História social da criança e da família. Rio de janeiro: LTC.
[3] BÖING, Elisângela; CREPALDI, Maria Aparecida. Os efeitos do abandono para o desenvolvimento psicológico de bebês e a maternagem como fator de proteção. Estudos de Psicologia, v. 21, n. 3, p. 211-226, 2004.
[4] BOWLBY, John. Uma base segura: aplicações clínicas da teoria do apego. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
[5] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1983.
[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1975.
[7] FREUD, Sigmund. (1976c). A questão da análise leiga. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 205-293). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1926).
[8] FREUD, Sigmund. (1972). Tratamento psíquico (ou mental). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 293-327). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1905).
[9] KOHLBERG, Lawrence. Ensaios sobre moralidade e educação. São Paulo: Atlas, 1981.
[10] LACAN, Jacques. (1985). O Seminário Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
[11] LAPLANCHE, Jean., & PONTALIS Jean-Bertrand (1976). Vocabulário da Psicanálise. Lisboa: Moraes.
[12] PRISZKULNIK, Léia. A criança sob a ótica da Psicanálise: algumas considerações. Universidade de São Paulo. Psic v.5 n.1, 2004.
[13] PRISZKULNIK, Léia. Clínica(s): diagnóstico e tratamento. Psicologia USP, 11 (1), 11-28, 2000.
[14] RUTTER, Michael. Resilience: some conceptual considerations. Journal of Adolescent Health, v. 14, p. 626-631, 1987.
[15] SPITZ, René. Hospitalism: an inquiry into the genesis of psychiatric conditions in early childhood. Psychoanalytic Study of the Child, v. 1, p. 53-74, 1945.
[16] VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
Comments