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Ana Carolina Levy

REVOLUÇÃO PROTEICA: O Prêmio Nobel da Química de 2024

“À pessoa cuja descoberta ou invenção foi de maior importância para a área da química” 


A palavra do ano, pelo menos para a bioquímica, é proteína. Apenas no corpo humano, são mais de 100 mil, diversificadas em funções de crescimento, restauração e manutenção do organismo. São as ferramentas básicas para todo o funcionamento natural da vida e, até pouco tempo, um mistério aos olhos dos cientistas. Para o Comitê Nobel da Química, o prêmio deste ano é, sem sombra de dúvida, uma celebração à compreensão e controle dessas estruturas; parte para Demis Hassabis e John M. Jumper, por aplicarem a inteligência artificial na previsão das estruturas de todas as proteínas conhecidas, e parte para David Baker, por descobrir como criar proteínas sintéticas com funções inéditas e promissoras. 


UMA EM UM QUATRILHÃO

Foi apenas a partir da década de 70 que os avanços químicos tornaram possível estudar a estrutura tridimensional de uma proteína. Desde então, passa a ser definida como um esquema de aminoácidos  — dentre os vinte existentes — sequenciados de modo específico, unidos como uma corrente e codificados com as informações funcionais específicas. A grande descoberta, porém, encurralou os estudos das proteínas em um enigma que se estabeleceria pelos próximos 50 anos: estima-se que uma única sequência de 100 aminoácidos poderia se converter em uma ordem de grandeza de 1047 possibilidades de estruturas 3D. Mas como identificar a correta?

Mesmo para um computador, que é capaz de analisar um bilhão de estruturas por segundo, o tempo de identificação do arranjo correto ultrapassaria até mesmo a idade atual do universo. Para uma célula, por outro lado, é uma questão de milissegundos, que dobra e torce e molda as correntes de aminoácidos em formatos distintos e únicos. É este formato que define sua função. Definir meticulosamente a configuração de uma sequência protéica dentre uma série de possibilidades aleatórias se tornou não só um mistério para a comunidade bioquímica — conhecido como Paradoxo de Levinthal — mas também um desafio em prol do avanço científico.


OLIMPIADAS DE PROTEÍNA

Frente ao Paradoxo, foi estabelecida a competição bianual de Avaliação Crítica da Previsão da Estrutura Proteica (CASP). Cientistas de todo o mundo se inscrevem para receber uma sequência de aminoácidos, devendo prever a estrutura da proteína equivalente, cuja identidade — previamente analisada experimentalmente — é revelada apenas após o concurso. Vence o resultado mais próximo da estrutura correta. Com o tempo, a combinação do espírito competitivo com a expansão das pesquisas na área tornou a competição um indicador de precisão dos novos métodos que vinham a ser desenvolvidos. 

Nas últimas décadas, mesmo as técnicas mais eficazes — de cristalografia de raios X para algoritmos computacionais — estagnaram em uma precisão por volta dos 60 ou 70%, sendo limitadas a sequências curtas com poucos aminoácidos. Foi apenas com o lançamento do programa Alpha Fold 2 que o indicador CASP alcançou uma média acima de 90%, marcando o fim da competição e trazendo um prêmio inestimável de parte do Nobel da Química de 2024 para os vencedores.


ALPHAFOLD 2 - Hassabis e Jumper

O entusiasta de xadrez Demis Hassabis se destacou desde cedo nas pesquisas em Inteligência Artificial, desenvolvendo o modelo computacional AlphaFold para o uso em jogos de tabuleiro. O modelo foi pensado com base nos princípios de identificação de imagem e aprendizado por otimização do próprio cérebro humano, que é chamado de rede neural convolucional. Entretanto, foi ao aplicar o programa na competição CASP de 2018 que Hassabis expandiu seu sucesso para outras áreas, surpreendendo a comunidade internacional ao atingir uma marca nunca antes alcançada de 60% de precisão (antes limitada aos 40%). Nos anos seguintes, a DeepMind, empresa responsável pelo desenvolvimento do programa, centrou-se no avanço do programa em previsibilidade de estruturas de proteínas. O resultado, Alpha Fold 2, só foi possível com a chegada do químico John Jumper. 

Jumper trouxe ao projeto uma abordagem nova, alinhada com seus próprios estudos anteriores em química e física. O novo projeto removeria completamente o uso da rede neural convolucional, substituindo-a pela novidade do mundo da Inteligência Artificial: redes neurais chamadas Transformers, capazes de identificar padrões dentre quantidades exacerbadas de dados de forma mais flexível e específica para um objetivo em particular. Com as mudanças no sistema, o modelo então foi treinado por Hassabis e Jumper com todas as sequências de aminoácidos já conhecidas, agora capaz de alinhá-las comparativamente e identificar padrões que se preservaram ao longo da evolução dos organismos. Além disso, o programa explora as interações entre aminoácidos possíveis ou não de acordo com a polaridade e carga das moléculas. Cargas opostas levam a aminoácidos mais distantes, assim como aminoácidos mais hidrofóbicos se relacionam mais facilmente. A partir dessa análise e dos novos Transformers, o AlphaFold 2 monta um mapa 3D de distâncias entre os aminoácidos e o interpreta como um grande quebra cabeça, gerando uma estrutura hipotética equivalente. Com esse novo modelo, a competição CASP de 2024 é encerrada com uma precisão impressionante acima de 90%. 



DE TRÁS PARA FRENTE - DAVID BAKER

Não foi apenas Hassabis que se destacou na competição. Na primeira vez em que o bioquímico David Baker participou, em 1998, ele estreou seu programa computacional Rosetta com um sucesso notável no indicador CASP. Foi assim que começou a estudar o que aconteceria se usasse seu programa para o processo contrário: colocar a estrutura de uma proteína desejada — e, consequentemente, sua função — para obter a sequência de aminoácido equivalente em resposta. Dominando esse mecanismo, Baker seria capaz de produzir proteínas inéditas.

Começou projetando uma proteína não natural como objetivo final para que o programa gerasse. A partir da estrutura, o Rosetta faz uma procura por fragmentos parecidos com a estrutura desejada, dentre todas as proteínas conhecidas, e monta uma otimização de espaço entre eles com base nos princípios de conformação energética das proteínas. Como resultado, o programa cria diversas soluções que se enquadram nos dados obtidos e as ranqueia em termos de energia. Quando alcançou a sequência correspondente com o planejado, apelidou sua primeira proteína de Top7, publicando seus estudos em 2003.

Após seu sucesso com a Top7, Baker e seus colegas adentraram um mundo de possibilidades e potenciais dentro do campo de construção de proteínas sintéticas, o chamado Design De Novo, evoluindo para funções cada vez mais complexas e avançadas. Desde então, um novo caminho para estudos intensos nas propriedades proteicas se abriu, como em suas reações catalíticas, dinâmicas, regulação, entre outras. Com as conquistas que os modelos IA associados a tecnologia de Transformers vinham conquistando desde 2020, Baker logo os adicionou em seu programa, gerando resultados cada vez mais impressionantes.



E AGORA?

Eventualmente, ambos os programas foram publicados para toda a comunidade internacional, e, até o começo de outubro de 2024, o código do AlphaFold 2 já tinha sido utilizado por mais de 2 milhões de pessoas em mais de 190 países. O que antes levava anos agora é possível em uma questão de minutos. Desde 2020, o laboratório de Baker vem explorando as mais diversas possibilidades e resultados, como a criação de uma proteína resistente a antibióticos para estudos farmacêuticos ou com propriedades decompositoras de plástico. 

O acesso a informações de mais de 200 milhões de proteínas — número que agora só cresce — escalou para uma ordem estrondosa. Desde então, criar proteínas com novas funções permitiu um desenvolvimento de novos nanomateriais, a produção de vacinas mais rapidamente, estudar a possibilidade de decomposição de plástico, entender o porquê antibióticos perdem efeito, produzir fármacos direcionados e muito mais. As possibilidades são incontáveis; os feitos de Hassabis, Jumper e Baker abrem portas para uma nova era na biologia e biomedicina, revolucionando os benefícios para a humanidade e o nosso entendimento da vida.

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