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A Bomba-Relógio da Saúde: Como as Doenças Tropicais Negligenciadas e Antimicrobianos Resistentes Podem Colapsar Sistemas Médicos

Letícia Eça

Em um laboratório no Instituto Butantã, em São Paulo, pesquisadores observam, preocupados, o crescimento de bactérias em placas de Petri. O que eles veem confirma seus temores: as bactérias sobreviveram ao tratamento com os antibióticos mais potentes do mercado. Esta não é uma cena isolada. Na verdade, é parte de um fenômeno global chamado de “pandemia silenciosa”.


Enquanto isso, em áreas remotas das Américas, doenças tropicais como malária, leishmaniose e doença de Chagas seguem devastando comunidades inteiras, frequentemente exigindo tratamentos que, ironicamente, aceleram a resistência antimicrobiana.


Juntas, essas duas problemáticas já se tornaram uma grande preocupação de saúde pública, corroendo a base dos sistemas de saúde e ameaçando não apenas vidas, como também a estabilidade econômica global.



Figura 1: Cultivo de colônias de bactérias em laboratório / Fonte: Ted Horowitz via Getty Images


Atualmente, organismos resistentes a medicamentos contribuem com quase 5 milhões de mortes anuais, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). “A resistência a antibióticos pode matar mais de 10 milhões de pessoas anualmente até 2050” revela um relatório realizado pela The Review on Antimicrobial Resistance. Enquanto isso, as doenças tropicais negligenciadas atingem mais de 1 bilhão de pessoas por ano, segundo a própria OMS.

Doenças Tropicais Negligenciadas: A Epidemia Invisível 

Predominantes nas regiões mais pobres e desamparadas do hemisfério sul, e esquecidas pelos governos, as doenças tropicais negligenciadas (DTNs) representam um grande risco à saúde global. 


Nomeadas assim pela OMS, mais de 20 doenças afetam as remotas comunidades rurais e urbanas, concentradas próximas ao Equador. A combinação de pobreza, falta de saneamento básico e acesso limitado a serviços de saúde favorece o aumento da ocorrência de casos. Na Região Amazônica, por exemplo, as comunidades ribeirinhas enfrentam um desafio triplo: distância de centros médicos, ausência de saneamento básico e presença constante de vetores transmissores. Municípios da região Norte, por sua vez, enfrentam distâncias de até 500 km até a zona urbana, exigindo horas de viagem realizadas somente via fluvial, para receber atendimento médico básico. Esse isolamento geográfico e sanitário exemplifica perfeitamente a razão pela qual essas doenças são chamadas de “negligenciadas”: não se trata apenas da falta de investimento em pesquisa e tratamentos, mas de todo um sistema que mantém comunidades presas no ciclo vicioso da pobreza e na falta de acesso a direitos básicos, garantidos pela própria Constituição Federal. 


Muito além de riscos à saúde, as DTNs impactam significativamente a economia. Estima-se uma perda do rendimento familiar de, aproximadamente, 33 bilhões de dólares anuais e uma perda na produtividade de 342 bilhões de dólares entre 2015–2050, conforme a equipe de Controle de Doenças Tropicais Negligenciadas.


Para aqueles que vivem na pobreza, essas doenças são como ficar trancado em um quarto sem chave. Sem acesso a cuidados de saúde, essas pessoas encontram-se sem saída

Resistência Antimicrobiana: A Pandemia Silenciosa 

Com um prejuízo econômico estimado em 100 trilhões de dólares, a resistência antimicrobiana (RAM) vem, aos poucos, dominando o cenário farmacêutico global. Resultado da evolução de microrganismos e da ausência de resposta ao tratamento, muitas vezes ocasionada pelo uso inadequado de medicamentos, a RAM qualifica-se como uma crise global e silenciosa. 


Dessa maneira, a pobreza, associada ao acesso limitado a serviços de saúde, corrobora o aumento de microrganismos resistentes. Em comunidades carentes de países em desenvolvimento, diagnósticos tardios e equivocados ocasionam a prescrição equivocada de fármacos. 


As mortes pela RAM estão em uma curva ascendente, podendo alcançar, ou até ultrapassar, os óbitos por câncer nos próximos anos.


Figura 2: Gráfico comparativo de mortes por RAM (ou AMR - em inglês) e outras causas entre os anos de 2020 e 2050 / Fonte: Hannah Kuchler via Valor Econômico 
Figura 2: Gráfico comparativo de mortes por RAM (ou AMR - em inglês) e outras causas entre os anos de 2020 e 2050 / Fonte: Hannah Kuchler via Valor Econômico 

Figura 2: Gráfico comparativo de mortes por RAM (ou AMR - em inglês) e outras causas entre os anos de 2020 e 2050 / Fonte: Hannah Kuchler via Valor Econômico 


Em um primeiro momento, a RAM pode parecer com uma pequena falha no sistema, como uma página na Internet que carrega lentamente. Entretanto, com o tempo, ela se espalha silenciosamente até que, um dia, nada mais funciona e um sistema inteiro colapsa. Esse é o grande perigo da RAM. 

A tempestade perfeita: o ciclo da resistência e da negligência 

Quando as DTNs se encontram com a RAM, uma tempestade perfeita é formada — duas ameaças aparentemente pequenas, no entanto, capazes de criar um fenômeno desastroso e difícil de controlar. 


A relação entre ambas é mais profunda do que parece. Por falta de incentivo à pesquisa e atenção das políticas públicas, muitas DTNs ainda dependem de tratamentos antigos. A doença de Chagas, por exemplo, possui dois medicamentos para tratamento: nifurtimox e benznidazol — ambos descobertos na década de 1970. Devido aos seus efeitos tóxicos, o primeiro foi proibido no Brasil na década de 1980. Já o segundo demonstrou baixa eficácia em estágios mais avançados da doença. 


Além disso, o uso exagerado de medicamentos na pecuária também é preocupante. O crescente número de fazendas industriais que fazem o uso indiscriminado de fármacos é responsável pela morte de quase um milhão de pessoas todos os anos e pela criação de ambientes favoráveis para a adaptação de protozoários causadores de DTNs, revela o relatório Custo global de saúde pública da resistência antimicrobiana na pecuária industrial intensiva


Enquanto a RAM ameaça a eficácia de tratamentos para infecções comuns, as DTNs afetam desproporcionalmente as populações mais vulneráveis, agravando a espiral negativa de pobreza e doença. Juntas, representam um duplo desafio para a equidade na saúde pública.

O futuro está em nossas mãos 

Com o objetivo de reduzir os casos de DTNs, a OMS recomenda cinco ações

  • Quimioterapia preventiva: uso periódico de medicamentos por meio de uma administração em massa. 

  • Gestão de casos individuais: identificação, tratamento e monitoramento dos doentes.

  • Controle de vetores: redução e/ou eliminação de vetores responsáveis pela transmissão dos patógenos.

  • Saúde pública veterinária e água: controle de zoonoses e garantia da qualidade da água, garantindo a saúde animal.

  • Saneamento e higiene: gestão adequada da água, esgoto e resíduos, prevenindo a transmissão de doenças.


Para o caso da RAM, também já existem medidas sendo estruturadas. O Plano de Ação Global indica uma necessidade maior de investimentos em novos antimicrobianos, além de um controle maior da biossegurança pecuária e uma melhor monitorização dos medicamentos utilizados em fazendas. Assim, a parceria entre a indústria farmacêutica e o governo torna-se imprescindível para a obtenção de resultados satisfatórios visando uma melhora na saúde pública, animal e ambiental. 


Já nosso trabalho como cidadãos conscientes é o de não ignorar essas duas grandes questões. Devemos garantir que os medicamentos que salvam vidas continuem eficazes, que nenhuma doença seja negligenciada e que cada indivíduo — independente de sua origem ou condição socioeconômica — tenha a chance de prosperar. Antes de serem problemas científicos e governamentais, essas questões são imperativos morais. Se não agirmos agora, a bomba-relógio da saúde poderá desfazer décadas de avanço científico para a saúde global, deixando milhares de pessoas sem tratamentos eficazes e perpetuando cadeias destrutivas. Cada um de nós tem o poder de advogar pela equidade na saúde e garantir esse direito a todo e qualquer cidadão. Salvemos vidas, salvemos o mundo.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


[1] MEDSCAPE. A resistência antimicrobiana expõe desafios globais do sistema de saúde. Disponível em: https://portugues.medscape.com/verartigo/6511291?form=fpf . Acesso em: 09 de janeiro de 2025


[2] REVIEW ON ANTIMICROBIAL RESISTANCE. Tackling drug-resistant infections globally: final report and recommendations. Disponível em: https://amr-review.org/sites/default/files/160518_Final%20paper_with%20cover.pdf . Acesso em: 09 de janeiro de 2025


[3] BRITISH MEDICAL BULLETIN. Neglected Tropical Diseases. Disponível em: https://academic.oup.com/bmb/article-abstract/93/1/179/307584?redirectedFrom=fulltext&login=false . Acesso em: 09 de janeiro de 2025


[4] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Ending the neglect to attain the Sustainable Development Goals: A road map for neglected tropical diseases 2021–2030. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240010352. Acesso em: 10 de janeiro de 2025


[5] UNITING TO COMBAT NTDs. The case for investing in neglected tropical diseases. Disponível em: https://unitingtocombatntds.org/en/neglected-tropical-diseases/invest-in-neglected-tropical-diseases/. Acesso em: 10 de janeiro de 2025



[7] INSTITUTO CCIH. Fatores que contribuem para resistência microbiana. Disponível em: https://www.ccih.med.br/fatores-que-contribuem-para-resistencia/. Acesso em: 11 de janeiro 2025


[8] UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. Avaliação da atividade tripanocida e da segurança terapêutica de um composto benzofuroxano derivado. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/23300/DIS_PPGMV_2020_PETRY_LET%c3%8dCIA.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 11 de janeiro de 2025


[9] ANTIMICROBIAL AGENTS AND CHEMOTHERAPY. Combination Therapy Using Benznidazole and Aspirin during the Acute Phase of Experimental Chagas Disease Prevents Cardiovascular Dysfunction and Decreases Typical Cardiac Lesions in the Chronic Phase. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC7318042/#:~:text=Benznidazole%20therapy%20during%20the%20acute,treatment%20(5%E2%80%937). Acesso em: 11 de janeiro de 2025


[10] WORLD ANIMAL PROTECTION. Custo global de saúde pública da resistência antimicrobiana na pecuária industrial intensiva. Disponível em: https://www.worldanimalprotection.org.br/siteassets/documents/protecao_animal_muncial_relatorio_custo_global_de_saude_amr.pdf. Acesso em: 11 de janeiro de 2025


[11] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Considerações para a implementação do tratamento em massa, procura activa de casos e inquéritos às populações sobre as doenças tropicais negligenciadas no contexto da pandemia de COVID-19 . Disponível em: https://espen.afro.who.int/system/files/content/resources/WHO-2019-nCoV-neglected_tropical_diseases-2020.1-por.pdf. Acesso em: 11 de janeiro de 2025


[12] ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Diretrizes: Quimioterapia preventiva para o controle de infecções por helmintos transmitidos pelo contato com o solo em grupos de risco. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/49072/9789275719947_por.pdf. Acesso em: 11 de janeiro de 2025


[13] RESEARCH, SOCIETY AND DEVELOPMENT. Desafios do atendimento de saúde nas populações ribeirinhas. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/39440. Acesso em: 12 de janeiro de 2025


[14] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Artigos 196 a 200. Disponível em: https://www.gov.br/conselho-nacional-de-saude/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/outras-normativas/constituicaofederal.pdf. Acesso em: 12 de janeiro de 2025





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